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O crime da arte






A ditadura do “politicamente correto” certamente teria ceifado todas as obras de Nelson Rodrigues, Boccaccio, Marquês de Saade e de Vladimir Nabokov além de tantas outras obras de arte.



O termo “politicamente correto” foi usado com parca frequência até a última parte do século XX e, não se relacionava com a desaprovação social geralmente considerada em uso mais recente[1].


Em 1793 o termo surgira na Suprema Corte dos EUA durante o julgamento de um processo político citada por James Wilson que comentou in litteris: “Os Estados e não o povo, para quem os Estados existem, são frequentemente os objetos que atraem e prendem nossa principal atenção... Sentimentos e expressões desse tipo impreciso prevalecem em nossa linguagem comum, como em nossa convivência. Será solicitado um brinde? Os Estados Unidos em vez do provo dos Estados Unidos é o brinde dado. Isso não é politicamente correto”. Chisholm vs. Georgia  2.US (2 Dall) 419 – 1793.



Imaginem, a famosa Dercy Gonçalves[2] com sua verborragia contundente e irreverente, certamente pela ideologia vigente seria arremessada na fogueira assim como o foi Joana D’Arc (Jeanne D’Arc).



A famosa donzela de Orléans (La Pucelle d’Orléans) era ruiva e hoje é considerada heroína francesa e reconhecidamente santa pela Igreja Católica. É a santa padroeira da França e, foi, ainda, Chefe Militar na Guerra dos Cem Anos, quando tomou partido pelos armagnacs, na longa luta contra os borguinhões e seus aliados ingleses[3].



Foi executada por ato de fé feito pelos borguinhões em 1431. Joana era uma camponesa, modesta, analfabeta e considerada hoje mártir francesa e, somente reabilitada vinte e cinco anos após sua morte, em 1456, pelo Papa Calisto III que considerou o processo que a condenou inválido. Finalmente foi canonizada em 1920 pelo Papa Bento XV.



Restou esquecida pela história até o século XIX, conhecido como o século do nacionalismo quando a França veio a redescobrir esta personagem trágica.



Mas, Joana D’Arc não fora aceita pela unanimidade pois Shakespeare a retratou como bruxa e Voltaire dedicou-lhe um poema satírico, onde a ridicularizava.


Somente quinhentos anos depois de sua morte, Joana D’Arc foi canonizada passando então a ser Santa Joana D’Arc pois enfim tal canonização traduzia o desejo da Santa Sé de estabelecer laços com a França republicana, laica e nacionalista.

A Santa Joana é sincretizada nas religiões afro-brasileiras com a orixá Obá.


A noção de pedofilia, zoofilia, pornografia e blasfêmia foram promovidas à alta categoria de crime contra a família, moral e aos bons costumes e, finalmente, considerada como delito hediondo a merecer a reprimenda mais expressiva, capaz de impor a censura, a mordaça e, fatalmente, o silêncio. Limitando-se a liberdade de expressão, de ir e vir e de crença.



No dia 03 de agosto de 1988 é celebrado o fim da censura[4] em nosso país, quando o direito à liberdade de expressão fora expressamente admitido e garantido conforme consta do artigo 5º, inciso IX do vigente texto constitucional brasileiro.



O polêmico episódio sobre o cancelamento da exposição Queermuseum patrocinada pelo Santander Cultural na cidade de Porto Alegre (RS) chegou a ser noticiado pelo famoso jornal Washington Post.



A mesma exposição foi formalmente recusada no MAR – Museu de Arte do Rio por decisão do atual prefeito Marcelo Crivella (PRB) e os debates abriram uma crise entre o museu e a prefeitura.



Mas, antes, em 14/09/2017 a polícia brasileira apreendeu o quadro intitulado “Pedofilia” da artista plástica Alessandra Cunha que estava em exposição no MARCO (Museu de Arte Contemporânea) devido à pressão de deputados estaduais do Mato Grosso do Sul.



Afinal o direito pátrio também tutela a liberdade de expressão artística? Pois o quadro apreendido pela polícia devido a Boletim de Ocorrência na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e Adolescente e pediram ainda a inclusão da artista no cadastro geral de pedófilos. A apreensão em comento se deu apenas após quatro dias do polêmico cancelamento da exposição Queermuseum no Santander Cultural, em Porto Alegre.



Cogitou-se de crime de apologia criminosa, mas se formos ortodoxos como entender a novela de Glória Peres, na rede Globo, de 2017, intitulada “A Força do Querer” apesar de ser obra de ficção?



Lembremos que os crimes previstos no ECA – Estatuto da Criança e Adolescente exigem integralmente o envolvimento direto da criança ou do adolescente, e, não apenas de representações, tais como: desenhos, gravuras, pinturas e, etc... mesmo que em atividades sexuais explícitas ou implícitas.[5]



Aliás, se ainda acreditássemos em apologia ao crime, o que comentar sobre a protagonista dessa mesma novela das oito, onde a Bibi Perigosa[6] fez literalmente de tudo: trai, trafica, mate e até chega criminosos, além de expor o próprio filho (uma criança) a toda sorte de perigos concretos e reais?



Aliás, ao representar o drama da pedofilia, o quadro apreendido agita uma denúncia contundente que não encontra atendimento ou escuta atenta por boa parte da sociedade contemporânea.



É preciso que se entenda que juridicamente não há crime, seja na produção ou exposição do quadro. Afinal, trata-se de representação artística.







[1] O monumento da cultura também não isento de barbárie. Por isso, o materialista histórico considera que a história deve prover o contrapelo (Walter Benjamin; Sobre o conceito da história, Tese 7, 1940). Leandro Narloch (Guia Politicamente Incorreta da História do Brasil, 2ª edição, São Paulo: Leya, 2011) que esmiuçou o politicamente correto, nos informa com lucidez que os homens são e serão o que sempre fora na sociedade burguesa: acumuladores de dinheiro e de poder, tudo sem muita angústia, muito menos drama, embora sempre com alguns laivos de tênue espírito de cidadania ou mesmo de nacionalismo, confundido com a admiração pelos feitos da elite nacional.

[2] Dercy Gonçalves Costa (1907-2008) foi atriz, humorista e cantora brasileira, oriunda do teatro de revista, notória por suas participações na produção cinematográfica brasileira das décadas de 1950 e 1960. Reconhecida pelo Guinness Book como a atriz com maior tempo de carreira na história mundial (totalizando 86 anos). Foi festejada por suas entrevistas irreverentes e bom humor, e também pelo uso constante de palavras de baixo calão, foi um dos maiores expoentes do teatro de improviso brasileiro.

[3] A Guerra dos Cem Anos aconteceu em plena Idade Média, entre os anos de 1337 e 1453, em verdade, durou cento e dezesseis aos. Tal guerra envolveu os reinos da França e Inglaterra. E, foi a principal e mais sangrenta guerra europeia do período medieval. O conflito militar teve sua causa principal na rivalidade existente entre o rei Filipe de Valois, proclamado como soberano em França, depois da morte de Carlos IV (o último rei da dinastia dos capetos) Eduardo III da Inglaterra.
E, este último pretendia ter direito à coroa francesa por parte de sua mãe. As disputas territoriais e comerciais também acirraram o conflito. Quando o rei Carlos VII subiu ao trono, quando os ingleses ocupavam quase todo o território francês. Surgiu, naquele momento, a heroína Joana D'Arc, que comandou o exército francês para várias vitórias, sendo a principal investido par ao cerco de Orleans. Porém, a heroína fora capturada e queimada viva em 1431. Mas, o impulso dado pela camponesa fez mudar o caminho da guerra, dando forte vantagem para o exército francês.

[4] A censura no Brasil conta com grande tradição desde os tempos da colonização quando os portugueses, nossos colonizadores, não aceitavam críticas à Igreja Católica e nem as ideias iluministas. Muitas obras artísticas e literárias não podiam circular em meios públicos. Por conta disso, antes de publicar os conteúdos, a imprensa tinha que primeiramente enviar seus artigos para o órgão competente, ou seu trabalho teria que ser supervisionado por um fiscal.
A censura no Brasil atuou no campo cultural e político e em sua maioria terminou pouco antes do período chamado de redemocratização que começou em 1974.
Mas, o Brasil ainda experimenta certa quantidade de censura não oficial atualmente. E, a legislação atual restringe a liberdade de expressão em relação ao racismo e a Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, proíbe o anonimato, apesar de que liberdade de expressão seja cumprida. Durante o regime militar iniciado em 1964, todas as formas de perseguição são intensificadas, além de outras que foram elaboradas. Após a promulgação do AI-5, todo e qualquer veículo de comunicação deveria ter a sua pauta previamente aprovada e sujeita a inspeção local por agentes autorizados.

[5] A luxúria é pecado capital, ou seja, o mais forte, segundo a doutrina católica e serve de porta para levar a outros pecados. Nesse pecado há diversas ramificações tais como a prostituição, sodomia, pornografia, incesto, pedofilia e zoofilia ou bestialismo, fetichismo e sadismo (busca de prazer infligindo dor ao parceiro) e masoquismo (busca de prazer recebendo do parceiro punições que envolvem dor), desvios sexuais e outras parafilias. Tornou-se de praxe utilizar o termo “pedofilia” para qualquer referência sexual praticada com crianças e adolescentes, desde a fantasia e desejos até a concretização do abuso; e o termo “pedófilo” para todo aquele que se sente atraído por crianças, ou que pratica abuso contra as mesmas. Todavia, tal entendimento é totalmente equivocado, vez que confunde crime com doença, pois nem todo criminoso que abusa de crianças e adolescentes pode ser classificado como pedófilo.

Conforme ensinamento da psicóloga Karen Michel Esber “Confunde-se muito o crime de abuso sexual com a pedofilia. A pedofilia é um diagnóstico clínico, não é um diagnóstico de atos de crimes. O sujeito pode ser um pedófilo e nunca chegar a encostar a mão em uma criança”. Para Miguel Chalub, psiquiatra forense e professor associado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ, pedofilia é a atração que uma pessoa sente por crianças que ainda não atingiram à puberdade. “Se a pessoa sente atração por uma criança que ainda não atingiu os caracteres sexuais secundários, que não apresenta aptidão para a vida sexual, nós denominamos, de acordo com as definições e legal, de pedofilia”. Para os pedófilos, as fantasias que dominam suas mentes estão fora do controle consciente e não ocorrem por escolha voluntária, enquanto que o abuso sexual acontece por mera deliberação de quem o comete. Não existem punições legais para os pensamentos de um indivíduo, por piores que eles venham a ser, uma vez que na legislação Brasileira a cogitação não é punida, por isso, somente quando a atração sexual de um pedófilo passa da cogitação para a execução é que o mesmo poderá ser responsabilizado legalmente.

[6] Convém lembrar acanhadamente que a personagem fora inspirada na pessoa real chamada Fabiana Escobar, alcunhada de baronesa do pó que fora casada por quatorze anos com o traficante Saulo de Sá Silva, preso há mais de dez anos, que inspirou outro personagem na trama novelística, chamado "Rubinho".

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